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sábado, 1 de dezembro de 2018

O sindicalismo brasileiro há uns 100 anos



Por Rodrigo Ancora da Luz*

Por esses dias, eu estava refletindo sobre como era o movimento sindical brasileiro do início do século XX e fiz um breve comparativo com a atual realidade que foi se configurando a partir da década de 90. Então me veio à memória uma minissérie brasileira exibida pela Rede Globo em maio de 1984 chamada Anarquistas, Graças a Deus, a qual foi ao ar quando eu tinha apenas 8 anos de idade.

Escrita pelo cineasta Walter George Durst, a trama foi uma adaptação do romance autobiográfico de Zélia Gattai, escrito em 1979. Tal obra traz reminiscências do país nos anos 10 e 20 do século XX juntamente com histórias da infância da autora, a qual nasceu numa família de imigrantes italianos que se estabeleceu num reduto anarquista que havia na cidade de São Paulo.

Confesso que, na época da minissérie, eu pouco me interessei pelo que a TV nos mostrou. Porém, anos mais tarde, quando já era um estudante secundarista (ensino médio), comecei a entender como se desenvolveu o movimento operário nas primeiras décadas da República brasileira, o qual foi muito intenso em São Paulo e nos estados do Sul, graças a dois fatores importantes: a industrialização e a imigração italiana. Principalmente por causa da influência européia uma vez que a mão-de-obra importada já havia conquistado alguns direitos no país de origem ainda não reconhecidos no Brasil.

Fato é que, há um século atrás, as condições de trabalho aqui eram péssimas. Os salários eram baixíssimos, a jornada laboral chegava a ser de até 16 horas diárias, além da exploração de mulheres e de crianças. Aliás, esse trecho do livro citado revela um pouco das dificuldades vividas pelas famílias operárias:

"Os temores de dona Angelina tinham uma explicação: sempre levara uma vida de apertos; casara-se muito jovem, quase uma criança, apenas completara quinze anos e o noivo dezoito. O salário do inexperiente marido, empregado na oficina de seu pai, na Rua Barão de Itapetininga  (oficina de consertos de bicicletas, armas de fogo, máquinas de costura etc., não era suficiente para o sustento da casa. Embora contra a vontade ele permitiu que sua mulher, após o casamento, continuasse na fábrica de tecidos, no Brás, onde trabalhava desde a idade de nove anos, ajudando nas despesas do lar paterno. Mesmo assim, com os dois parcos ordenados, levavam vida de sacrifícios. Com os dois reduzidos salários viviam três pessoas, pois tia Dina, irmã mais nova de papai, passaria a morar com os recém-casados. Órfã de mãe desde pequena, Dina aprendera a ter responsabilidades, esperta como ela só, cozinhando e cuidando da casa."

Ora, foi nesse contexto que surgiram no Brasil as primeiras greves juntamente com comícios e passeatas de rua, as quais buscavam atrair a simpatia da população para as reivindicações trabalhistas. Nos anos 10, em São Paulo, os manifestantes organizavam longas marchas vindas de bairros distantes da cidade até à Praça da Sé, no Centro, ou ao Largo da Concórdia, no Brás, contando com o apoio de todas as categorias profissionais. Calcula-se que, em 1920, para um número de 500.000 operários no país, havia cerca de mil sindicatos.

Para reprimir esse notável espírito de luta e de organização dos trabalhadores, os governantes tratavam os movimentos sociais como "questão de polícia", de modo que a greve chegou a ser criminalizada. Líderes sindicais eram presos e muitos foram expulsos do país. Inclusive a legislação vigente previa essa possibilidade que hoje a Constituição de 1988 de modo algum permitiria.

Pode-se dizer que, na década de 30, os trabalhadores alcançaram importantes vitórias com o governo de Getúlio Vargas, o qual criou o Ministério do Trabalho e regulamentou, por decreto, a sindicalização das classes patronais e operárias, as quais passaram a ter caráter paraestatal. Surgiram também, nesse importante momento histórico, as leis trabalhistas e os institutos de previdência social. 

Verdade é que, nos últimos 30 anos, o sindicalismo brasileiro não mais demonstrou tanta força como nos tempos no anarcossindicalismo. Tivemos no ano passado uma reforma trabalhista que suprimiu vários direitos conquistados, porém não houve uma mobilização no país capaz de se opor influentemente aos retrocessos engendrados por Michel Temer.

Como explicar esse enfraquecimento do movimento sindical em plena democracia? Afinal, o que foi que aconteceu com os trabalhadores brasileiros?

Ora, é inegável que, nas últimas décadas, ainda no final do século XX, desapareceu a figura do antigo operário de fábrica, sendo certo que as unidades industriais, devido ao uso cada vez maior da tecnologia, têm necessitado menos de mão-de-obra. E essa relação inversamente proporcional, por gerar desemprego em massa, fez com que o sindicalismo se esvaziasse em face do risco de demissão. Em outras palavras, se o trabalhador se sente insatisfeito com o salário que recebe, há muitos por aí aguardando ser contratados pelas empresas.

Todavia, não foi só isso que aconteceu! Pois também houve um distanciamento dos sindicatos dos trabalhadores de maneira que a contribuição obrigatória, a qual até março de 2017 era descontada de todos os representados de uma categoria (mesmo sem estarem filiados ao órgão de classe), gerou uma acomodação de muitos dirigentes sindicais. Isto porque, ao invés de prestarem um bom serviço para ganharem mais associados, essas instituições simplesmente poderiam se manter com a arrecadação do tributo anualmente recolhido.

Talvez o fim do chamado "imposto sindical" tenha sido o único ponto verdadeiramente positivo da reforma trabalhista de Temer e creio que as adversidades políticas previstas nos próximos anos acabarão favorecendo a luta dos trabalhadores. Aliás, como se sabe, os bons desafios fazem bem a todos e aí vejo que, mesmo com a eleição do direitista Jair Bolsonaro, os movimentos dos sociais poderão novamente se fortalecer no país devido à necessidade de enfrentamento de uma pauta conservadora.

Não podemos esquecer que muitas das coisas que hoje temos na vida, a exemplo da saúde de nossos corpos, só passamos a valorizar quando as perdemos. E, neste sentido, a consciência da retirada de direitos fará com que o trabalhador outra vez se posicione e vá às ruas lutar pela sua dignidade e sobrevivência. Nem que seja através de um grande movimento de desempregados!

Mesmo que ninguém tome banho por duas vezes no mesmo rio, como bem disse o filósofo Heráclito de Éfeso, penso que as sementes plantadas há cem anos atrás pelo anarcossindicalismo não morreram. Pois a essência de toda aquela luta (os ideias libertários) sempre há de reviver diante de qualquer opressão que se levantar.

(*) Rodrigo Phanardzis Ancora da Luz é advogado e assessor jurídico do SISPMUM

OBS: A foto acima refere-se à greve de 1917, movimento este que paralisou São Paulo durante um mês, sendo o artigo originalmente publicado em 26/11/2018 no blog do autor: http://doutorrodrigoluz.blogspot.com/2018/11/o-sindicalismo-brasileiro-ha-uns-100.html

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